terça-feira, 22 de junho de 2010

OPINIÃO CRÍTICA SOBRE “UM DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS”, de Boaventura Sousa Santos

1. Introdução
Este “discurso sobre as ciências”, de Boaventura Sousa Santos (BSS), é demasiado denso e cheio de informações e citações, que o tornam difícil de resumir em poucas linhas. Ao mesmo tempo, apesar de ser um discurso datado (1985, publicado em 1988) e, portanto, com 25 anos de existência, mantém alguma actualidade. Foi escrito numa década de ouro do discurso pós-moderno e manifesta, portanto, esse tempo de tentativa de unificação dos saberes e das ciências, de fim das grandes narrativas, que o pós-modernismo debateu. As grandes religiões deixaram de ser o que eram e a garantia de um céu no além não fez com que a humanidade ficasse melhor ou com que as pessoas projectassem os seus actos quotidianos para esse fim utópico; do mesmo modo, as grandes narrativas comunistas, prometendo, como as religiões, futuros radiosos e “amanhãs que cantam”, não melhoraram o homem nem as nações e implodiram, como a ex-União Soviética, fim da ideia global de progresso interminável. Este discurso pós-moderno traz-nos a unidade onde havia duplicidade e tenta acabar com as dicotomias reinantes, de que é exemplo a frase de BSS de que “todo o conhecimento científico-natural é científico-social”, isto é, fim das grandes distinções ou do paradigma dominante que compartimentava as ciências.
A grande tese do autor baseia-se na apresentação de um novo paradigma: a unificação das ciências naturais com as ciências sociais e com as denominadas “humanidades” ou estudos humanísticos. Este objectivo parece não estar atingido, embora haja uma tendência para utilizar uma linguagem comum às várias ciências. É assim que as dicotomias matéria e natureza, orgânico e inorgânico, humano e não-humano, por exemplo, passam a ser tomadas como uma unidade ou como entidades inseparáveis. BSS refere o fim de outras duplicidades (natureza/cultura, natural/artificial, vivo/inanimado, mente/matéria, observador/observado, subjectivo/objectivo, colectivo/individual, animal/pessoa) e do fim das contradições entre as diversas ciências. À “concepção mecanicista da natureza”, feita de dualismos e contradições aparentes, propõe-se uma unidade dinâmica, um “estado de turbulência”. Daqui deriva uma “reconceptualização”, isto é, uma criação de novos conceitos aplicáveis às ciências, em que a analogia seja central e categoria matricial deste paradigma emergente: textual, lúdica, dramática, biográfica… Daqui, podermos falar de “teatro molecular” (analogia dramática), “jogo entre as partículas” (analogia lúdica), “texto celestial”(analogia textual), “biografia das reacções químicas” (analogia biográfica).
A “fusão” das ciências naturais com as ciências sociais (fala-se também em ciências humanas, como se não fossem todas humanas) parece estar ainda distante, apesar do texto de BSS a defender há já 25 anos. De qualquer modo, parece que a humanidade caminha para uma compreensão da diversidade como uma unidade e que as várias dualidades ou dicotomias tendem a desaparecer.

2. O Paradigma Emergente

Definido de um modo simples, um paradigma é uma maneira de ver as coisas ou de representar o mundo e, por isso, também significa “visão do mundo” ou, como diz BSS, “um modo de olhar” e um “modo de ser olhado”. Thomas Kuhn, o sociólogo e filósofo das ciências que mais divulgou o conceito, define-o como “um quadro que define os problemas e os métodos legítimos e que permite uma maior eficácia da investigação: uma linguagem comum favorece a difusão dos trabalhos e canaliza as investigações”. No caso das ciências sociais, a que BSS se refere frequentemente, o paradigma descreve o conjunto das experiências, crenças e valores que influenciam o modo de perceber o real e de reagir à percepção do real. É, por isso, um sistema de representação do mundo. Neste sentido, falamos, por exemplo da mudança de paradigma quando de uma visão geocêntrica medieval, na senda de Ptolomeu, passamos para uma visão heliocêntrica, na senda de Copérnico. Mas o conceito de paradigma pode significar mais ainda, como podemos dizer que um índio da Amazónia, por exemplo, vive num outro paradigma, longe dos objectos que nós consideramos úteis e que eles consideram inúteis ou mesmo maléficos. Mas foi nos anos 80, quando este texto de BSS foi escrito (1985), que a palavra foi hipervalorizada, a partir de um livro anterior (“A Estrutura das Revoluções Científicas”, de 1962) do sociólogo e filósofo das ciências Thomas Kuhn, que reintroduz o conceito no campo das ciências (sociais ou naturais) como representação ou modelo coerente do mundo, que repousa sobre uma base bem definida, seja ela uma matriz disciplinar, um modelo teórico ou uma corrente de pensamento.

Por que razão fala o autor em “crise do paradigma dominante” e num anunciado novo “paradigma emergente”?

Este é o centro da questão que todo este texto levanta.
Tentemos compreender a “crise”, utilizando os argumentos e definições do autor, sintetizados em quatro “rombos” fundamentais que o pós-modernismo criou no paradigma vigente nas ciências sociais e/ou naturais. A crise “profunda e irreversível” do modelo de racionalidade científica, a que BSS se refere, “como resultado do grande avanço no conhecimento”, tem origem em Einstein e na sua teoria da relatividade. Será este o primeiro rombo, no início do século XX. É que Einstein rompe com os conceitos da física clássica de tempo (T) e de espaço (E), sendo o T e o E a quarta dimensão do real e, logicamente, o E/T varia com o observador e a velocidade da luz: o T não é o mesmo neste espaço Terra e numa galáxia distante.
O segundo “rombo”, quase simultâneo, tem a ver com a Mecânica Quântica, relacionada com a microfísica ou física de partículas, isto é, a física atómica e subatómica. O “real” torna-se “diverso”, as relações de incerteza aparecem e as leis da física que pareciam eternas, como a lei da causalidade (“à mesma causa segue-se o mesmo efeito”) abrem brechas.
O terceiro rombo tem a ver com o fim do rigor matemático e o quarto rombo com toda a diversidade da evolução da microfísica, da química, da biologia, nos últimos 20 anos.
O nosso tempo é feito de riqueza e diversidade: os cientistas tornam-se filósofos e problematizam a sua própria prática científica e a sociologia alarga-se e reflecte sobre si própria e, por isso, surge a crise do paradigma da ciência moderna, com mais rigor e menos capacidade de autorregulação.

Qual será então o paradigma emergente?

Podemos dizer, de um modo simples, como o dissemos antes, que tem a ver com a “unificação” ou aproximação das diversas ciências. E que, como escreveu o próprio Thomas Kuhn, “uma linguagem comum favorece a difusão dos trabalhos e canaliza as investigações”. Daí a necessidade de uma “fusão” e de uma linguagem unificada, de que falamos atrás.
“No paradigma emergente o conhecimento é total, tem como horizonte a totalidade universal”, escreve BSS, lembrando que “todo o conhecimento é local e total”, esbatendo mais uma dicotomia. Hoje afirma-se que “o local é global” e utiliza-se mesmo o neologismo “glocal” para significar essa ligação ou fusão, de que fala o autor.
Para além do fim das dicotomias, o autor acentua o aspecto do “auto-conhecimento” e, consequentemente, do fim da dualidade sujeito/objecto. Esta distinção epistemológica perde sentido quando falamos de unidade, em vez de dualidade ou dicotomia. Por isso, o autor escreve que “todo o conhecimento científico é auto-conhecimento” e que “a ciência não descobre, cria, e o acto criativo protagonizado por cada cientista e pela comunidade científica no seu conjunto tem de se conhecer intimamente”, o que significa o fim desse distanciamento entre sujeito e objecto. Ao criar, o cientista conhece-se, conhecendo a totalidade em que está integrado. Daí, o autor defender que “a ciência é, assim, autobiográfica”, no sentido em que o que é conhecido faz parte do que conhece e vice-versa.
O autor termina este ensaio distinguindo entre o paradigma dominante, baseado na distinção entre racionalidade científica e senso comum, considerando este como “superficial, ilusório e falso” e o paradigma emergente que integra o senso comum e transforma esse “conhecimento” prático e pragmático na nova racionalidade. Nem teria sentido de outro modo, dado que o quotidiano das pessoas deve integrar a nova reflexão e prática científicas. É o que o autor denomina, com sentido, “a sabedoria de vida”.

Conclusão
O conhecimento científico e a linguagem científica não existem no vazio etéreo, distantes da realidade. Assentam na própria realidade e estão ancorados no próprio senso comum. Este senso comum, denominado por alguns filósofos das ciências como conhecimento pré-científico, tem um lugar na escola, como transmissor das vivências pessoais e da aproximação ao mundo. Em vez de pré-científico, deveríamos dizer ante-científico, na medida em que está antes da ciência, como base e ponto de partida.
O senso comum está ligado ao processo de socialização mas é um saber imediato (confunde o real com as suas aparências), subjectivo (ligado a factores culturais e psicológicos), heterogéneo (baseia-se numa acumulação não organizada de representações sobre a realidade) e não crítico (baseia-se em ideias feitas sobre o real).
É a partir do senso comum que todos os conhecimentos mais levados se formam.
"Toda a ciência e toda a filosofia são senso comum esclarecido". Karl Popper, in Conhecimento Objectivo.

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